Terminei a leitura de A Voz do Fogo de Alan Moore publicado pela Saída de Emergência. Antes de escrever uma apreciação com alguma qualidade precisaria de ler o livro mais uma vez, coisa que não vou fazer porque, neste momento, prefiro digeri-lo de empreitada e reduzir apenas a sensação última, a noção final, o processo de digestão, assimilação e descarregamento. Porque por vezes a primeira impressão basta, pelo menos para percebermos para onde corre o sangue nas nossas veias, para onde iremos nós a existir. Enfim, o que Alan Moore procurou explicar não foi esse para onde (porque se calhar ninguém sabe) mas sim por onde, não ao encontro do quê, mas sim à descoberta de uma possibilidade que se afigura em nós como possibilidade de descoberta.
Onde estou eu perante o que existe e que me intriga? Onde estou eu perante os túneis que correm por baixo dos meus pés? Quem sou eu nos meus sonhos? Onde me situo nas recorrências do mundo? Esta é uma história que se situa entre ser sobre Northampton e as pessoas que aí viveram/passaram nas suas respectivas situações cronológicas; e entre ser apenas em Northampton quando poderia ter sido noutro sítio qualquer. Balançando entre diversas nuances, Alan Moore descreve um universo espectacular (que decorre num período de seis mil anos) onde parece que qualquer coisa pode acontecer e onde se dá voz a coisas que ontologicamente não deveriam ter voz. Há quem diga que qualquer lenda tem um fundo de verdade. Há quem minta e entreteça verdades em mentiras, mentiras em verdades, meias-mentiras e meias-verdades. Não acreditem no escritor, acreditem na Voz do Fogo (parafraseando Neil Gaiman), na Voz dos Anjos, nos vossos sonhos, em Vós.
Na contracapa do livro podemos ler uma citação do próprio autor seleccionada da página 284 que descreve sobre o que trata a Voz do Fogo: “É sobre a mensagem vital que os lábios ressequidos de homens decapitados ainda murmuram; é o testamento de espectrais cães pretos escritos em mijadelas nos nossos pesadelos. É sobre ressuscitar os mortos para que nos contem os seus segredos. É uma ponte, um local de passagem, um ponto gasto no tecido entre o nosso mundo e o mundo inferior, entre a argamassa e a mitologia, facto e ficção, uma fina ligadura deteriorada. É sobre a poderosa glossolália das feiticeiras e a sua revisão mágica dos textos que vivemos. Nada disto pode ser explicado por palavras.”
E não pode. Não apenas por palavras mas não, por nada, apenas. Recorrendo a uma magnífica expressão escrita que recupera todo um universo esotérico, místico, carregado de absolutas tensões criativas, Alan Moore oferece-nos a sua... perna, para nos ajudar a caminhar ou, quem sabe, lançar-nos às chamas vorazes da imolação.
Queria ainda destacar o trabalho de pesquisa efectuado pelo tradutor David Soares (ele mesmo criador de literatura fantástica) que, nas suas notas, selecciona, para cada capítulo, um conjunto de termos/personagens/situações/acontecimentos pertencentes ao universo mooriano, cujo desconhecimento por parte do leitor poderia resultar prejudicial para esta experiência literária.
Para fundamentar as informações fornecidas, é indicada alguma bibliografia anterior do autor, e de outros, que poderá enriquecer ainda mais a quantidade de conhecimentos que este livro sugere. David Soares não se limita a despejar informação pelo caminho mas preocupa-se, também, em levantar algumas questões convidando o leitor a pensar, o que é sempre de louvar.
Por fim, para quem quiser ler este livro: Bem vindos ao multiverso de Alan Moore.
Extras: Entrevista a David Soares http://www.serpente.net/article.php?story=20061213233603466