sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O Leitor de Bernard Schlink



Quando uma pessoa procura escrever uma crítica a um livro procura lê-lo mais do que uma vez. Acho que isso é o mínimo para uma crítica inteligente e informada. Porém, não é o que faço. Pouco mais me interessa do que depositar algumas palavras no meio de um blog onde tantos mais existem, no meio de imensas palavras, todas online, todas anónimas. Mais nada interessa e não existe qualquer necessidade de me cansar.

Ontem à noite acabei de ler O Leitor de Bernard Schlink. Dormi mal, com um aperto no estômago e acho que sonhei. Não chorei no fim, porque achei que aquele fim era para tudo menos para chorar, ou então esse fim não se revelou assim em mim. Foi um soco no estômago, esperava algo trágico, mas não propriamente num impacto ao virar a página. Esperava-o numa frase lá para o meio, no decorrer de um período de reflexão sobre a culpa humana, ou sobre a culpa alemã num pós-guerra que ainda agora se vive, que ainda agora mói e destrói.

A velocidade do século XXI ajudou a transformar certas coisas históricas em cliché. O Egipto é cliché, a 2ª Guerra Mundial é cliché, as biografias de personalidades são cliché, Hitler é o cliché dos clichés. O que agora efectivamente se vive desse período é algo ao qual não consigo responder. Quando Schlink fala no embotamento em relação aos sentimentos, às desgraças, aos terrores, que envolve tanto vítimas como acusados, esse sim eu sinto. Penso que esse embotamento impõe-se-nos como se impõe o tempo, as recordações, o peso do passado que vem e volta e surge subitamente.

A história de O Leitor não é uma história de amor. Nem tão pouco uma história romântica. É uma história de descobertas, de amor esquecido no interior do corpo, prematuramente desenraizado, vivido nas suas mais ínfimas manifestações, ou seja, vivido conforme é possível e conforme o quanto se está disposto a enfrentar os monstros. Claro que quando não se enfrentam cedo enfrentam-se tarde, quando nem tarde se enfrentam não desaparecem nunca, quando se rema a favor pode já ser demasiado tarde e essa falta pode passar a significar um problema de estrutura.

Michael Berg teve o seu, assim como Hanna e o povo alemão. Os filhos que culpavam os pais ou só os filhos que culpavam a presença de nazis no círculo de conhecimentos dos pais ou dos amigos dos pais: o cometer atrocidades e calar, tapar os ouvidos e cegar. Mas Schlink disse que faltavam imagens. O embotamento de sentimentos é um falhanço, tanto para si como para a sua geração. Para si como um dever-ter-culpa mas não sentir, perceber a fonte mas não beber.

Penso que O Leitor é mais do que um simples romance com história linear. Trata da filosofia do estar a ser, tipicamente alemã, do questionar-se, do dever, da ética, da moral, do amor e até da morte. É um livro cheio de ses, cheio de pontas soltas, de mal entendidos, de perguntas mal feitas, de respostas nulas, do não querer saber mas procurar ouvir um fragmento da resposta, é o abandonar-se a si e ao peso da solidão. Voluntariamente.

Durante o século XX ocorreu um Holocausto, temos fotografias tiradas pelos Aliados. Existe uma história sobre o assunto e tudo começou na Alemanha.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Mayhem - De Mysteriis Dom. Sathanas


Euronymous : Guitarras
Varg Vikernes : Baixo
Hellhammer : Bateria
Attila Csihar : Voz

Guest musician:
Blackthorn : Guitarras adicionais

Longa duração, Deathlike Silence Productions, 24 Maio 1994



Esta é a minha primeira review:
É irónico, dado o meu percurso como ouvinte de metal, iniciar reviews com o De Mysteriis Dom. Sathanas dos Mayhem. Milhares de reviews foram escritas e outras milhares surgirão com o avançar dos tempos. Isto porque o De Mysteriis continua a sua saga de imortalidade, continuando a ser explorado por diversos grupos de apreciadores (ou se calhar não tão diversos assim). Penso que o que enche este álbum de uma aura protectora - de culto – é, não só a sua história controversa, como a sua ingenuidade.
Longe de ser a primeira experiência de Mayhem no mundo do black metal (este é o seu primeiro longa-duração), De Mysteriis é lido como um marco incontornável do que foi a cena norueguesa do black metal em inícios dos anos 90, marcada como reacção ao death metal, ao declínio do thrash, à onda de popularidade e futilidade que marcou o fim de 80, registando-se, para alguns, como uma crise de criatividade.
Não só musical, a reacção do black metal ao cristianismo na Noruega marca uma posição irreverente, desprendida, que pretende reivindicar a sua autonomia, explorar os domínios do choque, reconhecendo-o como propaganda sem limites. Com interesse desmesurado em marcar a sua posição os black metalers optaram por cortar uma das veias mais frágeis da sociedade: a igreja como centro de uma comunidade, a fé cristã, a ordem social e até as leis.
Muitos apreciadores do género indicam este álbum como o fim, o resumo ou a conclusão daquilo que foi a cena black metal norueguesa. Nem mais nem menos. Neste álbum estão conjugados os vectores do que foi e do que continuará a ser (no espírito de muitas bandas posteriores) a sonoridade característica do black metal. Lembro-me, por exemplo, da reinterpretação que as Les Legions Noires fizeram do movimento, dando-lhe novo fôlego e novo sopro de vida em meados de 90.
Quer queiramos quer não, o black metal é marcado pela crueza, pela aridez e pelo niilismo nas palavras e no som. Agreste, para mim, é a palavra ideal para qualificar o De Mysteriis. Niilista é o ambiente que o rodeia, porém, repleto de intencionalidade. Expressivo, naquele que é o manifesto das loucuras da alma. Ingénuo, naquela que é a sua simplicidade, porta-voz de uma sensibilidade directa, um murro no estômago, uma performance maléfica e com pretensões à transcendência, porém num patamar tão real e definitivamente perturbador.
Imagino a performance do Attila em cima de um palco de teatro, com o seu esgar à beira da loucura e do suicídio, com pequenos momentos de lucidez. Imagino as ambições juvenis do falecido Euronymus que sabia ter em mãos uma masterpiece que resolveu defender até ao fim. Foi o seu último manifesto antes de passar para um mundo onde sempre escolheu viver. Os seus solos como ecos sólidos daquilo que viria a ser a sua sensibilidade de compositor. Queria destacar o solo da “Freezing Moon”, que (boatos correm) nem o próprio repetiu duas vezes. O que ficou gravado no CD foi um momento único, clássico (como muitos o chamam), sensível, quase ingenuamente elegante, obscuro, perene e emocional.
Porventura, alguém mais especializado do que eu, afirmou que o álbum contêm momentos muito repetitivos além de simplistas. Não discordo, mas a repetição e simplicidade na composição musical são-me muito caras por isso o meu gosto pessoal é impermeável a essas características que tolero e até procuro.
A voz reduzida ao sussurro foi alvo de crítica um pouco negativa e penso que seja um dos pontos fracos da obra, embora acredite que, por vezes, existe uma sinergia entre a voz e a música que me agrada pela sua determinação teatral. Varg, no baixo, não encontrou muito espaço para brilhar, destaco a prestação no “Life Eternal”, embora o admire enquanto compositor não creio que neste registo tenha deslumbrado muito. E embora pouco perceba de bateria Hellhamer, para mim, sempre foi sinónimo de virtuosismo precoce. Nada mais a acrescentar.
Este álbum, como muitos outros, cresceu bastante durante uma audição. Por vezes damos diversas hipóteses a um registo mas acabamos por não conseguir entrosar-nos. Depois há um dia em que, inexplicavelmente, ele legitima-se como um dos preferidos, como se conseguisse explicar-se por si, acabando até por ocupar um lugar no pódio pessoal. De Mysteriis Dom. Sathanas é um deles: tortuosa audição sobre um tortuoso fim, porque o black metal persegue e há-se sempre perseguir os rostos do fim.


Para informações adicionais e reviews ler http://www.metal-archives.com/ entrada Mayhem