Constatar o óbvio deixou-nos um pouco ressequidas e, sem mais demoras, resolvemos refrescar-nos.
E terminámos o dia de forma mística, quais Orishás, com a perspectiva de uma noite animada!
3 mentes brilhantes, diferentes, desafiadoras, perspicazes, iluminadas, modernas mas adeptas das tradições, tradicionalistas mas a favor de tudo que seja avant-garde, modestas mas não atrofiadas, arrogantes mas com humildade, a favor dos desfavorecidos mas com vontade de viver à grande, com gostos requintados sem descurar o popularucho.
Constatar o óbvio deixou-nos um pouco ressequidas e, sem mais demoras, resolvemos refrescar-nos.
Terminei a leitura de A Voz do Fogo de Alan Moore publicado pela Saída de Emergência. Antes de escrever uma apreciação com alguma qualidade precisaria de ler o livro mais uma vez, coisa que não vou fazer porque, neste momento, prefiro digeri-lo de empreitada e reduzir apenas a sensação última, a noção final, o processo de digestão, assimilação e descarregamento. Porque por vezes a primeira impressão basta, pelo menos para percebermos para onde corre o sangue nas nossas veias, para onde iremos nós a existir. Enfim, o que Alan Moore procurou explicar não foi esse para onde (porque se calhar ninguém sabe) mas sim por onde, não ao encontro do quê, mas sim à descoberta de uma possibilidade que se afigura em nós como possibilidade de descoberta.
Onde estou eu perante o que existe e que me intriga? Onde estou eu perante os túneis que correm por baixo dos meus pés? Quem sou eu nos meus sonhos? Onde me situo nas recorrências do mundo? Esta é uma história que se situa entre ser sobre Northampton e as pessoas que aí viveram/passaram nas suas respectivas situações cronológicas; e entre ser apenas em Northampton quando poderia ter sido noutro sítio qualquer. Balançando entre diversas nuances, Alan Moore descreve um universo espectacular (que decorre num período de seis mil anos) onde parece que qualquer coisa pode acontecer e onde se dá voz a coisas que ontologicamente não deveriam ter voz. Há quem diga que qualquer lenda tem um fundo de verdade. Há quem minta e entreteça verdades em mentiras, mentiras em verdades, meias-mentiras e meias-verdades. Não acreditem no escritor, acreditem na Voz do Fogo (parafraseando Neil Gaiman), na Voz dos Anjos, nos vossos sonhos, em Vós.
Na contracapa do livro podemos ler uma citação do próprio autor seleccionada da página 284 que descreve sobre o que trata a Voz do Fogo: “É sobre a mensagem vital que os lábios ressequidos de homens decapitados ainda murmuram; é o testamento de espectrais cães pretos escritos em mijadelas nos nossos pesadelos. É sobre ressuscitar os mortos para que nos contem os seus segredos. É uma ponte, um local de passagem, um ponto gasto no tecido entre o nosso mundo e o mundo inferior, entre a argamassa e a mitologia, facto e ficção, uma fina ligadura deteriorada. É sobre a poderosa glossolália das feiticeiras e a sua revisão mágica dos textos que vivemos. Nada disto pode ser explicado por palavras.”
E não pode. Não apenas por palavras mas não, por nada, apenas. Recorrendo a uma magnífica expressão escrita que recupera todo um universo esotérico, místico, carregado de absolutas tensões criativas, Alan Moore oferece-nos a sua... perna, para nos ajudar a caminhar ou, quem sabe, lançar-nos às chamas vorazes da imolação.
Queria ainda destacar o trabalho de pesquisa efectuado pelo tradutor David Soares (ele mesmo criador de literatura fantástica) que, nas suas notas, selecciona, para cada capítulo, um conjunto de termos/personagens/situações/acontecimentos pertencentes ao universo mooriano, cujo desconhecimento por parte do leitor poderia resultar prejudicial para esta experiência literária.
Para fundamentar as informações fornecidas, é indicada alguma bibliografia anterior do autor, e de outros, que poderá enriquecer ainda mais a quantidade de conhecimentos que este livro sugere. David Soares não se limita a despejar informação pelo caminho mas preocupa-se, também, em levantar algumas questões convidando o leitor a pensar, o que é sempre de louvar.
Por fim, para quem quiser ler este livro: Bem vindos ao multiverso de Alan Moore.
Extras: Entrevista a David Soares http://www.serpente.net/article.php?story=20061213233603466
O Inferno não é tão mau quanto isso, pelo menos quanto nos querem fazer crer. Afinal o que é, onde é? Será o Inferno tão estrangeiro como a existência terrena? O encantamento que apresenta a redundância do estar a existir no momento foi praticado por nós há muito tempo. Quis que ela soubesse tudo, bem, não tudo mas era mais apta do que eu. O que eu vejo ela vê melhor, era assim que costumava pensar e é assim que escrevo agora pois nada apresenta mais sentido. Se existe uma nota musical a sua identificação é tão visível quanto uma equação matemática é lógica. Ela era assim e eu caminhei ao seu lado, não sem ripostar, mas passeei no local dos mortos e tive medo e angustiei-me e vi fantasmas. Os fantasmas aparecem no cruzamento de expectativas itinerantes sobre o ente. Foi aí que me angustiei todos os dias, disparava raios sobre mim, Baphomet era a cabeça onde encostava o meu rosto quando queria chorar. Antes, nunca ninguém nos tinha falado sobre reverberação, depois soube o que isso significava, que caminhávamos todos os dias sobre um chão de espinhos, descalças, sem qualquer protecção mas isso foi há muito tempo e isso é um concerto terrestre, apesar de tudo.
Não acreditem em mim mas há dois anos atrás aprendi que para chegar à Coroa demoraria uma eternidade, como se procurasse subir uma escada sem fim. Quando avistasse o fim morreria, é o que acontece a todos, só alguns conseguem transpor o patamar, o que existe além dele? Só os santos o sabem, os escolhidos para representação do resto. Existe uma divisão dos entes, o que sobra é o resto.
Disseram que a matemática era a chave do universo, quem não a aprende tem que orientar-se com a magia ou a filosofia. A ciência é a toalha que colocamos sobre a mesa para as visitas não repararem nos socalcos da madeira velha e apodrecida com bicho. A religião nada mais é do que o boato da existência, a revista cor-de-rosa; sabíamos isso quando pronunciámos as sagradas letras, os outros eram o perigo de tempestades sobre o espírito mas ela sabia com o que contar, sabia muito bem quem lá estava, o que lá estava, eu não, e cega prossegui mordida pelos assaltantes do costume.